Quem são os povos não alcançados?

por Ana Maria Costa e Danilo Duarte Costa e Silva

Com o crescimento do acesso a informação em seus mais diversos aspectos e formas (internet, mídias sociais, telefonia celular, televisão a cabo, etc.…), pensar em alguém que nunca ouviu a mensagem do evangelho do Senhor Jesus pode parecer algo muito estranho ou, no mínimo, esquisito para quem vive no século 21 marcado por uma facilidade de comunicação nunca antes vivida na história da humanidade. Hoje, em apenas alguns segundos, alguém que não tem um mínimo interesse pela pessoa de Jesus pode encontrar quem foi Jesus, bem como detalhes aproximados de sua vida, mensagem, cultura e aspectos geográficos da Sua época, a partir de um simples clique e isto em muitas línguas distintas.

Diante desses fatos, contudo, para além do mundo globalizado e informatizado que vivemos, basta uma simples viagem de curto prazo (Short-term Mission) em uma nação africana para perceber que esta realidade não é bem assim (COSTA E SILVA, 2017).

Neste sentido, há poucos anos atrás, em um viagem simples que fizemos a um interior de uma nação africana (com um certo desenvolvimento e acesso a tais mídias citadas anteriormente), tivemos algumas surpresas que nos deixaram perplexos, pois  embora conhecessem bem a “Coca-Cola”, conhecessem bem a vida do jogador de futebol português, Cristiano Ronaldo, conhecessem bem como personagens presentes no mundo globalizado vivem, e até os seus discursos, contudo havia uma considerável falta de informação de quem ao certo era Jesus de Nazaré e, neste sentido, o conhecimento de quem foi Jesus era algo impressionantemente aquém do que poderíamos imaginar.

Definições históricas de povos não alcançados

Antes de nos aprofundarmos em relação à questão da realidade, gostaríamos de apresentar o que são os povos não alcançados (conhecidos pela sigla PNAs) e como são suas características. Para Datema (2016) a conceituação tem sua origem, dentre outros autores, com o trabalho do missiólogo Barrett (em 1968), seguido por uma série de definições (quadro a seguir), cada uma com suas particularidades e visando, por fim, apresentar algo mais adequado para a realidade.

As conceituações acima apresentadas por Datema (2016) refletem um pouco que a tarefa de definição de um povo não alcançado é incumbência um tanto árdua, uma vez que, dependendo de quem formulou (e do fim) tem sido diferenciada. Dessa forma, é preciso entender melhor as características de como se define um povo não alcançado e diferenciar de outras elaboradas com diversos fins.

Critérios para definir um povo

Para entender melhor como se processa esta diferenciação do que são povos não alcançados, o passo inicial é entender como classificar “um povo”, ou seja, quais critérios definem o que é um povo, e a partir disto poder elaborar estatísticas de quantos povos existem e quantos destes ainda não foram alcançados. Logo, diante desta realidade é interessante observar com cautela o quadro a seguir desenvolvido para fins missiológicos pelo então renomado missiólogo Ralph Winter (pouco antes do seu falecimento), juntamente com o Bruce Koch (WINTER E KOCH, 2002). Neste quadro os autores colocaram lado a lado um breve resumo de algumas características que devem estar presentes no entendimento do que seja um povo.

Fonte: elaborado pelo autor (2017)

Na tabela acima, portanto, para entender o que é um povo, os autores separaram em quatro tipos básicos: a) blocos culturais; b) povos etnolinguísticos; c) povos unimax; e d) sociopovos.

A primeira categoria de pessoas conhecido como “blocos culturais” são formados pelas grandes categorias de povos que o mundo é formado, ou seja, pelos 8 maiores blocos culturais (tipo mulçumanos, judeus etc.). E esta classificação serve para quem deseja estabelecer um olhar global sobre o mundo, contudo sem maiores aprofundamentos.

Uma segunda categoria de povos apresentados são os chamados “povos etnolinguísticos” formados a partir de um conglomerado de vários povos menores (e com características distintas). Aqui suas principais características são ter uma língua distinta de outro povo e diferenças étnicas. É interessante lembrar que para o estabelecimento deste grupo de povos etnolinguísticos, o ponto de partida é identificar se aquele grupo tem uma língua distinta, e uma vez tendo, o passo seguinte serão os aspectos étnicos.

Uma terceira categoria de povos são os “povos unimax” e neste sentido eles têm como característica o que se observa geralmente ao visitar pequenas comunidades, onde a rede de famílias forma a estrutura social local e fornece uma identidade. Não é incomum observar que, o conjunto de povos unimax forma um conglomerado de povos que por sua vez formam os povos etnolinguísticos.

A quarta e última categoria, apresentada aqui como “sociopovos”, são classificações de povos a partir de determinadas culturas, por vezes urbanas, criadas a partir de critérios de afinidade e outros. Aqui podemos destacar a classe de grupos de associados como taxistas, jovens suburbanos formando grupos “underground”, redes de skatistas etc.

Nesta obra oferecemos dados capazes de traçar estratégias no alcance dos povos não alcançados e, neste sentido, seguindo a linha apresentada por Johnstone (1990), o critério mais adequado para se estabelecer um planejamento de ações no alcance e, portanto, quantificar, deve estar próximo ao que se entende como povos etnolinguísticos (ou até étnicos) na classificação de Datema (2016) que veremos a seguir.

Quantos PNAs existem?

Uma vez apresentado vários conceitos de povos, bem como o detalhamento das características de definição dos mesmos, é interessante nos perguntarmos: quantos povos existem e quantos destes que existem ainda não foram alcançados? Datema (2016) apresentou em uma pesquisa recente, talvez a melhor composição atual em termos de quantidade (partindo de uma perspectiva missiológica), de quantos povos existem (quadro a seguir).

Datema (2016) uma vez apresentado quantos povos existem, também apresenta as principais estimativas de quantos destes que existem são povos não alcançados (quadro a seguir).

Com base no quadro acima, chegamos a conclusão que, dos 16.300 povos que existem no mundo hoje, cerca de 6.500 são Povos Não Alcançados (critério do Joshua Project). Ou seja, mais de um terço (37%, do gráfico a seguir) ainda carecem de ser alcançados com o evangelho do Senhor Jesus.

Figura 1: povos não alcançados

Uma vez apresentado os dados atuais de quantos povos não alcançados existem, gostaríamos de voltar nosso olhar para o cenário brasileiro e entender um pouco a evolução histórica do cenário de missões.  Apresentar um modelo brasileiro de estratégia para alcance de povos não alcançados, e também em termos de definição, por fim, refletir quais as implicações para o futuro.

Breve evolução histórica em termos de missões no Brasil

A evolução histórica em termos de missões pode ser datada do final do século 19. Pois em 1890 nasceu a Sociedade de Evangelismo, que passou a se chamar: Missão para Evangelismo e foi a mais antiga iniciativa missionária brasileira. Em 1907 a igreja batista começou a ajudar financeiramente o trabalho missionário no Chile.

Em 1910 batistas e presbiterianos juntos enviaram seus primeiros missionários para Portugal.  Mas o primeiro missionário transcultural brasileiro, batista, foi enviado em 1925. Até o século XX a iniciativa de agências interdenominacionais era bem pequena, com exceção da Missão Caiuá que começou em 1928, e a Evangélica Amazônica em 1948. Em 1950 começaram a chegar as missões transculturais internacionais.  Mocidade para Cristo (1952), Novas Tribos (1953), e muitas outras a partir de 1960. WEC (1963), Asas de Socorro e Missão Betânia em 1964,  Jocum e Operação Mobilização em 1976. Até 1970 a maioria das missões que surgiram no Brasil estavam ligadas às estruturas internacionais.

No ano de 1972 nasceu a primeira agência missionária brasileira autóctone: Betel Brasileiro, seguida pela Missão Antioquia 1976, e a partir de 1980 o número começou a crescer, em 1997 eram 25.  A Amide nasceu neste ano, incendiada por um ardente desejo de levar o evangelho aos PNAs e no próprio país. Atualmente, diante de tantas ênfases que a as agências tomaram, a Amide é uma das que se esforça por trabalhar com ênfase voltada especificamente para os povos não alcançados com persistência. A seguir uma breve exposição da história da instituição, destacando o envolvimento da sua fundadora e os seguintes avanços.

Missionária Ana Maria Costa

A “ANA”, A AMIDE E OS PNAs

Ana Maria Costa (fundadora da Amide, ou simplesmente “Ana”, mineira de Patrocínio, MG – Brasil)  iniciou, há mais de 30 anos, uma das mais belas jornadas de mobilização missionária para povos não alcançados do Brasil, começando com um forte impacto causado na Igreja Presbiteriana Nacional (sua Igreja local até hoje), e levando a mesma a uma ampla visão voltada para os de fora – uma vez que antes de 1984 havia apenas dois trabalhos de plantio apoiados, e hoje a igreja dá suporte em algo próximo a 90 missionários (após a atuação da Ana Maria em termos de mobilização), sobretudo em povos não alcançados, nos anos que se seguiram.

Com a ajuda do Senhor, dois anos depois (já em 1986), Ana Maria fundou o IDE, Instituto para Difusão do evangelho, no qual permaneceu durante 11 anos seguintes em dedicação intensiva nas missões urbanas no Uruguai e Açores. Também atuou na função de coordenadora de Missões transculturais e como vice-presidente. Teve oportunidade de visitar o Paraguai e o Quênia como supervisora de campo e dentre a sua atuação em diversas frentes, merece destaque sua mobilização de apoio missionário para Somália (na África) no período de guerra com levantamento de cerca de 30 toneladas de alimentos, cinco máquinas industriais de costura e contribuição direta na alimentação de mais de 10000 órfãos de guerra que padeciam de fome, nudez e frio nas noites no deserto.

Logo após esta época movida pelo amor aos PNAs, Ana Maria substituiu Dona Lídia Almeida, então diretora do Betel Brasileiro, como coordenadora de Mulheres do Brasil no chamado ‘Movimento AD 2000’. (Movimento de Mobilização no Brasil para alcance do pais tendo como base final o ano de 2000). Nesta época diversas vidas foram impactadas em todo país e vidas se renderam ao chamado para os campos transculturais a partir da sua mobilização.

            Em 1997, movida pela direção do Senhor, e amor pelos PNAs, Ana Maria, juntamente com uma equipe que caminhara com ela em projetos missionários, entenderam que deveriam criar uma agência missionária com prioridade para alcance de PNAs, e aí nasce a Associação Missionária para Difusão do Evangelho (Amide) com os trabalhos inicialmente enviando a primeira missionária, Edina Aparecida, a um povo islâmico em Guiné Bissau na África.

Hoje, após o avanço em décadas passadas, a Amide conta com trabalhos em diversos continentes (África, Ásia e América do Sul) tornando-se referência no Brasil em termos de treinamento, capacitação e estratégias para alcance de PNAs.

A Amide e o modelo de estratégia para alcance de PNAs

Nas últimas décadas, a Amide tem trabalhado um modelo voltado para alcance de povos não alcançados que tem sido caracterizado por 3 etapas distintas:

  1. Oração: Nesta etapa é quando oramos por um povo específico, oferecemos a uma igreja a possibilidade de adoção deste povo, e um irmão ou um grupo começa a orar e compartilhar, então essa visão alastra para a liderança, depois para toda a igreja e só então ela se envolve efetivamente com o projeto.
  2. Parceria: em seguida, agência e igreja promovem um culto público oficializando a adoção do seu povo. Começam orando por obreiros, Deus responde e levanta os trabalhadores, que depois de bem preparados vão conhecer, amar, evangelizar e discipular os que vierem a converter. E, assim, implantar a nova igreja, que sob visão missionária enviará os seus membros para plantar novas em outras vilas e povoados, até que aquela etnia seja alcançada pelo maravilhoso evangelho de Jesus. É um compromisso assumido e assinado diante do Senhor e da igreja, por todos os seus líderes e os líderes da agência. A partir daí espera-se um crescimento: orando pelas pessoas que compõe o povo, contribuindo fielmente para suprir as necessidades do povo e dos missionários.
  3. Estabelecimento de conglomerado de igrejas adotantes: A Amide trabalha como agência administradora do projeto e desafia um total de 5 igrejas para adotar um povo não alcançado. Assim, nos últimos 15 anos já temos 7 povos não alcançados adotados, e 2 deles emancipados tendo sua igreja com toda a liderança nativa e em fase de multiplicação.

Uma vez apresentado a situação dos povos não alcançados no mundo, e detalhado aspectos de uma missão brasileira que tem trabalhado com eles, a seguir será apresentada uma classificação própria, brasileira, voltada para os não alcançados.

“Povos minoritários”: uma classificação brasileira de não alcançados

Hoje o cenário brasileiro em termos eclesiológicos passa por um delicado momento de afirmação e necessidade de aprofundamentos (NICODEMUS, 2008) e neste sentido, diante deste cenário, há uma clara necessidade de estabelecimento de foco para ações missionárias voltadas também para o ambiente interno. Hoje, caso os conceitos importantes não forem bem estabelecidos, corre-se o risco de incidir no relativismo e, portanto, as ações missionárias serem relegadas a outra roupagem de serviço cristão local.

Com base nesta situação, há poucos anos, houve um movimento coordenado pelo missionário Ronaldo Lidório que estabeleceu uma classificação própria de povos não alcançados para o Brasil chamada de: “povos minoritários”. Com vistas a oferecer um alerta a Igreja brasileira sobre a necessidade de se estabelecer alvos práticos para o alcance de tais grupos. De acordo com Lidório (2014) no Brasil há oito segmentos reconhecidamente menos evangelizados, sendo sete socioculturais e um socioeconômico, são eles:

  1. Indígenas: com 117 etnias sem presença missionária e sem o conhecimento do Evangelho. Estas etnias, com pouco ou nenhum conhecimento de Cristo, espalham-se por todo o Brasil com forte concentração no Norte e Nordeste.
  2. Ribeirinhos: na bacia amazônica há 37.000 comunidades ribeirinhas ao longo de centenas de rios e igarapés. As pesquisas mais recentes apontam a ausência de igrejas evangélicas em cerca de 10.000 dessas comunidades.
  3. Ciganos (sobretudo da etnia Calon): Há cerca de 700.000 Ciganos Calon no Brasil e apenas 1.000 se declaram crentes no Senhor Jesus. Os Ciganos espalham-se por todo o território nacional nas grandes e pequenas cidades, vivendo em comunidades nômades, seminômades ou sedentárias.
  4. Sertanejos: Louvamos a Deus por tudo que tem ocorrido no Sertão nos últimos 10 anos – centenas de assentamentos sertanejos evangelizados e muitas igrejas plantadas. Há, porém, ainda 6.000 assentamentos sem a presença de uma igreja evangélica.
  5. Quilombolas: Formados por comunidades de afrodescendentes que se alojaram em áreas mais ou menos remotas nos últimos 200 anos. Há possivelmente 5.000 comunidades quilombolas no Brasil, sendo 3.524 oficialmente reconhecidas. Estima-se que 2.000 ainda permaneçam sem a presença de uma igreja evangélica.
  6. Imigrantes: Há mais de 100 países bem representados no Brasil por meio de imigrantes de longo prazo com uma população de quase 300.000 pessoas. Dentre esses, 27 são países onde não há plena liberdade para o envio missionário ou pregação do Evangelho. Ou seja, dificilmente conseguiríamos enviar missionários para diversos países que estão bem representados entre nós, sobretudo em São Paulo, Brasília, Foz do Iguaçu e Rio de Janeiro.
  7. Surdos, com limitações de comunicação: Há mais de 9 milhões de pessoas nesta categoria em nosso país e menos de 1% se declara crente no Senhor Jesus. Há pouquíssimas ações missionárias especificamente direcionadas para os surdos em todo o território nacional.
  8. Os mais ricos dos ricos e os mais pobres dos pobres: O oitavo segmento não é sociocultural como os demais, mas socioeconômico. Divide-se em dois extremos: os mais ricos dos ricos e os mais pobres dos pobres. As últimas pesquisas nacionais demonstram que a presença evangélica é expressiva nas escalas socioeconômicas que se encontram entre os dois pontos, porém sensivelmente menor nos extremos. Em alguns Estados brasileiros há três vezes menos evangélicos entre os mais ricos e os mais pobres do que nos demais segmentos socioeconômicos.

Considerações finais

De acordo com Lidório (2014) a Igreja de Cristo foi chamada para ser sal da terra e luz do mundo onde estiver e por onde passar (Mt 28.19) e foi-lhe entregue também um critério de prioridade nas ações evangelizadoras: onde Cristo não foi anunciado (Rm 15.20). É, portanto, momento de orar pelo mundo sem Cristo, pôr a mão no arado e não olhar para trás. Partindo então deste ideal, este livro é um esforço de reafirmar a atenção para Povos Não Alcançados na Igreja, e neste sentido, a seguir, estão divididos os capítulos em perspectivas teológicas, estratégicas e pessoais voltadas para os chamados PNAs.

Por fim, em meio a árdua tarefa de alcance destes povos, temos esperança, pois cremos no Deus do impossível, entendendo que a tarefa é sobretudo Dele e confiamos, conforme diz o profeta Habacuque (2.14), que a “terra se encherá do conhecimento da Glória do Senhor assim como as águas cobrem o mar”.

REFERÊNCIAS

COSTA E SILVA, D. Duarte. Rumo aos Não Alcançados. Natal: Editora e G. Sul, 2017.
DATEMA, Dave.  Unreached Defining “Unreached”: A Short History. International Journal of Frontier Missiology 33:2 Summer 2016
JOHNSTONE, Patrick “People Groups: How Many Unreached?. Journal International of Frontier Missions, Volume 7, Number 2, April 1990.
LIDÓRIO, Ronaldo A. Povos menos alcançados. News da Associação Missionária para Difusão do Evangelho (Amide): 2014. Disponível em: https://www.ultimato.com.br/conteudo/quem-sao-os-menos-evangelizados-no-brasil
NICODEMUS, Augustus. O que estão fazendo com a Igreja: Ascensão e queda do movimento evangélico brasileiro. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2008.
WINTER, Ralph D.; KOCH, Bruce A. Finishing the task: The unreached peoples challenge. Perspectives on the world Christian movement, International Journal of Frontier Missions, p. 509-524, 2002

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