Quando Deus pára um trem

Ásia, segunda, 23/07

por Hosana Seiffert

Dezembro de 2014, o frio do inverno indiano chegava a doer. A equipe missionária estava animada, todos iam passar o natal em outra cidade com amigos também brasileiros. Compraram luvas, gorros e cachecol para se agasalharem, e seguiram para a estação já bem tarde. Mas um imprevisto frustrou os planos: houve um problema com o trem que não pôde sair. Imagine mais de mil passageiros ali, parados na plataforma e, um a um, tendo de voltar sem poder seguir viagem…

A equipe também voltou. Mas ao contrário do que se poderia imaginar, todos estavam alegres. Já era quase de manhã quando chegaram em casa. O natal seria ali mesmo. Se acomodaram para descansar quando a campainha soou: era uma encomenda! Os documentos do Brasil necessários para abrir a tão sonhada empresa, uma escola de corte e costura voltada para viúvas, haviam chegado!

E, mais uma vez, a questão das viúvas entra em cena na nossa viagem. Um mês é muito pouco para entender uma cultura milenar como a indiana, mas de norte a sul do país ouvimos relatos estarrecedores e tristes sobre a condição das mulheres, especialmente das que perdem os maridos. Imaginei que seria uma realidade mais forte apenas entre as mais idosas ou nas vilas do interior do país, até conhecer histórias de jovens viúvas, em grandes metrópoles.

Uma delas é médica, oncologista, trabalhava na capital. O marido morreu repentinamente atropelado de forma trágica. Imediatamente, a família a tirou da cidade para livrá-la das consequências da viuvez. Não a conheci, mas sua história, contada por amigos, me deixou perplexa. Como uma médica, alguém que estudou anos a fio, tem que deixar seu trabalho, pacientes, pesquisas, casa e rotina subitamente? A morte do marido já não é suficientemente dolorida?

Para os hindus, a mulher não tem vida quando o marido morre. Antigamente elas deveriam se sacrificar na mesma fogueira onde o marido estava sendo cremado. Hoje, a cerimônia foi proibida por lei, mas boa parte da sociedade continua permeada pelo sentimento de abandono e desprezo das viúvas. Elas perdem o respeito e a dignidade. Não têm mais direito ao seu quarto ou casa, e não raramente, são abandonadas nas ruas. Consideradas um mau agouro, muitas viúvas vão para Vrindavan, conhecida como cidade das viúvas, onde peregrinam milhares de mulheres, pedindo esmolas aos turistas.

Uma amiga contou a cena que presenciou pouco tempo atrás, em pleno século 21, em uma vila: uma mulher sendo despida no meio da rua, em frente aos vizinhos, ao lado de uma bica. A cabeça dela foi raspada, os parentes a banharam e a vestiram de branco. Era o opróbrio da viuvez, a vergonha e a humilhação públicas. 

Mas Deus parou um trem para que a equipe missionária recebesse o documento que daria origem ao tão sonhado propósito de fazer diferença na vida de centenas de mulheres indianas! Conhecemos algumas delas. Fomos recebidos com sorrisos, abraços, água fresca e colar de flores. Fiquei ali sentada, enquanto cada um de nós se apresentava. “Hoje elas já sorriem”, sussurrou a nossa amiga. Elas aprendem corte e costura e, no fim do curso, ganham uma máquina de costurar. Mais do que isso, elas recebem carinho, atenção e respeito. Cerca de 200 viúvas já foram alcançadas em quase cinco anos de projeto, que hoje funciona em cinco cidades. A iniciativa oferece alimento, cobertores, uma casa para elas e, além disso, ampliou sua atuação para atender os filhos das viúvas, principalmente as meninas que, sem condições de estudar, seriam presas fáceis para o tráfico humano ou para a prostituição.

Mais do que qualquer templo, palácio ou maravilhas da arquitetura indiana que enchem os olhos de todos os viajantes, o nosso coração foi tomado de gratidão pela vida de gente que tem doado a própria vida para que o opróbrio, a vergonha e a humilhação da viuvez se transforme em dignidade para milhares de mulheres na Índia.

Perguntei à líder da equipe missionária: o que mais o projeto mais precisa? “De gente”, foi a resposta.  A quem enviarei, quem mais quer vir por elas?

Para saber mais sobre trabalhos com viúvas:
Missão Cristã Mundial: https://mcmpovos.com/pt-br/
Jocum: http://friendsnetwork.org/varanasi/

Filme completo: Water (2007) – em inglês
No Brasil o filme saiu com o título “Às Margens do Rio Sagrado”

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